F) A teoria da matéria em Kardec
- Vinícius Costa
- 11 de out. de 2022
- 4 min de leitura

Como já discutido, filosoficamente, o cristianismo e o espiritismo não se formaram pelo panteísmo puro, ou até mesmo, pelo monismo derivado do dualismo exclusivista, pois seu viés filosófico é de se separar a natureza das coisas em, pelo menos, duas instâncias: criador e criação. Em verdade, como já sugerido, os espíritos da codificação ampliam essa discussão defendendo um dualismo inclusivo, ou seja, todas as naturezas são verdadeiras mesmo que diferentes, ramificando um desses lados, a criação, em outras duas naturezas distintas: espírito e matéria. Observa-se, por exemplo, agora em sua totalidade, a questão vinte e sete de O Livro dos Espíritos:
27. Há então dois elementos gerais do Universo: a matéria e o espírito?
“Sim e acima de tudo Deus, o criador, o pai de todas as coisas. Deus, espírito e matéria constituem o princípio de tudo o que existe, a trindade universal. Mas, ao elemento material se tem que juntar o fluido universal, que desempenha o papel de intermediário entre o espírito e a matéria propriamente dita, por demais grosseira para que o espírito possa exercer ação sobre ela. Embora, de certo ponto de vista, seja lícito classificá-lo com o elemento material, ele se distingue deste por propriedades especiais. Se o fluido universal fosse positivamente matéria, razão não haveria para que também o espírito não o fosse. Está colocado entre o espírito e a matéria; é fluido, como a matéria é matéria, e suscetível, pelas suas inumeráveis combinações com esta e sob a ação do espírito, de produzir a infinita variedade das coisas de que apenas conheceis uma parte mínima. Esse fluido universal, ou primitivo, ou elementar, sendo o agente de que o espírito se utiliza, é o princípio sem o qual a matéria estaria em perpétuo estado de divisão e nunca adquiriria as qualidades que a gravidade lhe dá.” (Grifos nossos)[1]
Três pontos depreendem-se, como estrutura fundamental da filosofia espírita, dessa questão essencial de “O Livro dos Espíritos”. Um ponto distancia o Espiritismo da essência de Heráclito, outro faz a teoria codificada por Kardec concordar com o pré-socrático e em outro, por último, os Espíritos complementam a teoria da matéria do filósofo jônico apresentando uma matéria unificadora que resolve o problema proposto por Heráclito, por assim dizer.
O primeiro ponto da questão vinte sete é claro. Para os espíritos da codificação a natureza da realidade é tripla: Deus, Espírito e Matéria. Além disso, é fundamental ressaltar que essa triplicidade para os espíritos não está no mesmo nível. Por isso, Deus é apresentado acima da matéria e do espírito, sendo a qualidade de sua natureza diferente, ressaltando a filosofia cristã que assim também enxerga, hierarquicamente, o fenômeno da criação. Em um segundo ponto, percebe-se que o estágio de divisão, ou incompletude latente do princípio material, como pensado por Heráclito, também existe. A matéria de alguma maneira está polarizada e não unificada. Incompleta e dispersa e não reunida, unificada. É dessa ideia que se destaca o terceiro ponto. A matéria e o espírito possuem, sim, um princípio unificador: o fluído cósmico universal. Funcionando como um intermediário entre espírito e matéria, o fluido cósmico universal perpassa toda a criação garantindo que essa esteja, em essência, unificada, sendo a polarização aparente. Daí a sensação de unidade que se sente, desde Heráclito que tudo é um mesmo quando se vê a matéria em oposições. Não porque em si a matéria, compartilha da idêntica qualidade da natureza divina em superposição, mas, sim, pela existência em toda a criação de um fluido divino que perpassa e conecta a tudo e a todos.
Kardec, tentando dar sentido ao fluido universal com as nomenclaturas da época, o associa, por imagem, a eletricidade. Todavia os espíritos demonstram que o fluido universal, por sua matéria sutil, vai além desta. Tendo a perfeição do Criador na dimensão da criação, esse fluido é independente, ainda, de todos os fluidos descobertos no século XIX como o elétrico e magnético mesmo que estes derivem deste primário:
27. a) — Esse fluido será o que designamos pelo nome de eletricidade?
“Dissemos que ele é suscetível de inúmeras combinações. O que chamais fluido elétrico, fluido magnético, são modificações do fluido universal, que não é, propriamente falando, senão matéria mais perfeita, mais sutil e que se pode considerar independente.”[2]
Está assim proposta as bases da teoria espírita da matéria. A unificação intuída por filósofos, como Heráclito, não está em si no compartilhamento da mesma qualidade da natureza entre criador e criação como se fosse uma coisa só, mas sim na existência de um elemento fluídico do criador que perpassa toda a criação. Esse elemento conecta a trindade da realidade: Deus, Espírito e Matéria. E faz o espírito sentir a conexão entre ele próprio, Deus e a Matéria mesmo que essas três coisas sejam qualitativamente diferentes.
[1] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados. [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013. Pág. 83. [2] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados. [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 201. 526 p.; 23 cm. Pág. 84.
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