A) Divisão Histórica e Filosófica
- Vinícius Costa
- 11 de out. de 2022
- 6 min de leitura

Espiritismo e Filosofia, visa unir o trabalho de Allan Kardec na codificação da Doutrina dos Espíritos à história da Filosofia, evidenciando a intrínseca ligação do Espiritismo com o pensamento filosófico de tradição, prioritariamente, ocidental que influenciou Kardec. Para uniformizar os vocábulos que serão usados nesta obra, este prólogo inicial apresenta conceitos e ideias gerais da História da Filosofia para que, a partir destes, possa se aproximar Kardec, e - por conseguinte- o Espiritismo, das tradições filosóficas que orientaram a percepção intelectual do, até então – apenas - professor, Hippolyte Léon Denizard Rivail, ao propor suas questões aos Espíritos nas obras da codificação espírita.
Filosoficamente, este trabalho, começa por uma divisão histórica da filosofia, o que auxiliará a entender o tempo de Kardec e as questões centrais do pensamento filosófico no século XIX. Concomitantemente, também poder-se-á compreender as questões espirituais trazidas pelo codificador lionês que ultrapassam sua temporalidade histórica. Assim, ao se tomar por base a divisão temporal histórica ocidental mais dominante na tradição do pensamento eurocêntrico, divide-se a filosofia em quatro eras, cada uma com suas próprias características: Filosofia Antiga, Filosofia Medieval, Filosofia Moderna e Filosofia Contemporânea.
A Filosofia Antiga engloba o início da Filosofia na Grécia por volta do século VII a.e.c. até o século I d.e.c. A nomenclatura filosófica aqui usada, “a.e.c” e “d.e.c” tem por significado a abreviação da terminologia “antes da era comum” e “depois da era comum” como marcação terminológica para a contagem do tempo do mundo ocidental. Em termos de datação, nada se altera às terminologias comuns “antes de Cristo” (d.C.,) e de “depois de Cristo.” (d.C.) que comumente são usadas, em tradição popular, de contagem do tempo no ocidente. Em respeito ao pluralismo religioso, todavia, característica marcante do pensamento filosófico, opta-se por preservar a identificação temporal que não necessariamente tenha como eixo o nascimento de Cristo de maneira religiosa, ao mesmo tempo que se preserva como o termo “era comum” o impacto cultural dominante que o Cristianismo produziu nas culturas do globo. Se o cristianismo não é problema para o espiritismo, pelo contrário, por sua farta ligação na obra de Kardec, principalmente em suas inequívocas propostas morais semelhantes a proposta moral espírita se alicerça nos valores cristãos, não se dá dessa maneira em relação a todas as construções religiosas do mundo, que podem assemelhar-se ou afastar-se do eixo cristão de pensamento. Ao contar o tempo como aqui proposto, mais em sentido pluralista filosófico do que rigidamente religioso, busca-se minimizar a imposição religiosa cultural dos valores ocidentais sobre o mundo, traço dominante da histórica política do globo. Para além disso, em verdade, importa destacar, que alguns historiadores estendem a temporalidade da antiguidade na filosofia até o final do século V, quando em 476 d.e.c termina-se o Império Romano do Ocidente, o que se assemelha com a contagem temporal realizada pela tradicionalmente. Define-se, assim, o fim do Império Romano Ocidental como o evento histórico marcante para o fim da Antiguidade, finalizando, portanto, o período iniciado com o advento da escrita há 4.000 anos antes da era comum. Para este trabalho, todavia, que tem foco analítico filosófico e religioso, opta-se por entender o encerramento da Antiguidade no século I d.e.c para evidenciar como a presença do Cristianismo modifica o cenário filosófico vigente, transformando as discussões do logos filosófico puro, a razão, por conseguinte, sua conexão com a fé, movimento este já observado nos primeiros cristãos do primeiro século pós encarnação de Cristo.
Em seguida à Antiguidade, a Filosofia Medieval constrói o período de maior influência do catolicismo sobre a história ocidental, abarcando o período do século I ao século XV. Já a Filosofia Moderna nasce, em sentido historiográfico eurocêntrico, no século XV com o advento dos movimentos humanistas e renascentistas indo até os momentos finais do século XVIII com a virada iluminista e a revolução francesa na Europa. A partir do século XIX até os dias atuais, seguindo o eixo temporal histórico filosófico até aqui apresentado, dar-se-á, na tradição ocidental, o nome de Filosofia Contemporânea.
Alguns eventos históricos no campo da história da religião são marcantes e precisam ser destacados para melhor compreensão desses quatro períodos históricos supra descritos. Antes mesmo do nascimento da Filosofia na Grécia, marco do nascimento da filosofia na tradição eurocêntrica de pensamento como já ressaltado, a busca filosófica-religiosa se estendia pelo Mediterrâneo conectando os territórios europeus, africanos e asiáticos. O judaísmo, antes do século VII a.e.c, já se consolidava como uma religião de valores monoteístas, ou que, pelo menos, havia consolidado um pensamento monolátrico (idolatria de um único Deus) se comparado as tradições polidolátricas mais comuns que se espalhavam ao longo das culturas mediterrâneas, eixo econômico da Antiguidade. Ao ampliar-se conceitos de filosofia para a atividade do pensar humano, não necessariamente destacando o fazer filosófico como tendo nascido na Grécia, em específico, observa -se que este pensar filosófico estava presente nas discussões religiosas e mitológicas de todos os povos da Antiguidade. Apenas como exemplo, a cultura egípcia, de predomínio político econômico antes da Grécia filosófica, contava com a figura do Rekhet, um conselheiro do Faraó para assuntos do pensar. A figura de um pensador que orientava a prática pública dos governantes da Antiguidade, antecede o nascimento da filosofia oficial, o que evidencia que a marcação temporal da Filosofia na Grécia do século VII a.e.c para VI a.e.c. acaba sendo arbitrária. Todavia, opta-se por manter essa forma tradicional de contagem sobre o nascimento da filosofia para compreender, em essência, como foram os estudos filosóficos de Kardec, influenciados pelo eurocentrismo vigente de algum modo, e como estes afetaram a formulação dos problemas que o codificador do Espiritismo apresentou aos espíritos em suas reuniões mediúnicas no século XIX. Afinal foi, nesse modo eurocêntrico que marcava o início da filosofia como sendo especificamente um fenômeno grego, que se estudava filosofia no século XIX europeu.
Outro evento religioso marcante que modifica o cenário filosófico-religioso como aqui já introduzido na explicação sobre a datação das épocas filosóficas, foi o advento do Cristianismo no contexto de domínio do Império Romano. A filosofia religiosa nascida com os primeiros cristãos, ressignifica a lógica da racionalidade humana para a conexão com uma fé em uma vida futura que norteia a prática de vida das mulheres e homens do primeiro século depois de Cristo. Os impactos desse fenômeno precisarão ser estudados profundamente para compreender-se as conexões com a filosofia, principalmente se o objetivo aqui é chegar até o entendimento de Kardec e, por isso, tais conexões serão minuciadas, em estudos específicos que se seguirão em capítulos subsequentes. Torna-se útil relembrar, por hora, que a Idade Média marca o nascimento dos estudos teológicos no ocidente e a tentativa de explicar Deus pela razão toma conta de boa parte de religiosos e pensadores deste período. O eixo central da fé e suas conexões, possíveis ou impossíveis com a razão, marcam decisivamente o medievo.
Já no início da Filosofia Moderna, um evento histórico religioso decisivo ressignifica os estudos bíblicos e filosóficos: a reforma protestante. O trabalho crítico de pioneiros como John Huss, que inaugura as críticas a tentativa da Igreja Católica de monopólio sobre o pensamento filosófico religioso, desembocam nos movimentos reformistas luteranos, calvinistas e anglicanos que acabam por romper com a necessidade de intermediação episcopal para a interpretação da bíblia. Nasce, assim, a oportunidade para que a exegese bíblica, estudos dos fatos narrados no livro sagrado dos cristãos, bem como a hermenêutica narrativa, a interpretação desses fatos pelo simbolismo do texto bíblico, sejam realizados por cidadãos comuns. A reforma protestante, acompanhada pelo desenvolvimento tecnológico trazido pela prensa de Gutemberg, possibilitou, de maneira rápida, a cópia e reprodução da Vulgata bíblica lida à época. Além disso, vale ressaltar o impacto da reforma ao possibilitar que o texto bíblico pudesse ser traduzido para várias línguas neste contexto. Ampliou-se, assim, a possibilidade de estudos religiosos e filosóficos com base no texto sagrado do cristianismo.
Tal abertura interpretativa da religião e, por conseguinte, dos assuntos religiosos, possibilitou que cerca de quatrocentos anos mais tarde da eclosão do movimento protestante em prol da liberdade religiosa, o professor Rivail, ao observar o inquietante fenômeno das mesas girantes, passasse a interpelar os Espíritos com questões advindas de toda tradição filosófica que conhecia desde os seus estudos formativos educacionais na perspectiva de Pestalozzi. Nesse momento chave da humanidade, que marca os séculos iniciais da era contemporânea, o Espiritismo surgiu reunindo as principais questões filosóficas da história colocando-as ao encontro da resposta dos espíritos. Esse momento unificador e transformador para a humanidade é o que será demonstrado aqui. Para isso, começar-se-á por criar um espaço de diálogo entre Kardec e os Filósofos, ajustando vocabulários para melhor compreensão do filósofo Kardec em seu intercambio com os Espíritos. Não se pretende com os vocábulos que aqui serão usados, um aprofundamento discursivo acadêmico, que faria este texto se perder em um labirinto conceitual, distanciando-se do teor deste projeto, mas apenas oferecer ferramentas linguísticas para que se possa compreender a filosofia por trás de Kardec na elaboração de suas perguntas no contato que estabelece com os Espíritos. Conceitualmente trazer uma discussão detalhista demais de termos filosóficos, importante sem dúvida no sentido de pesquisa acadêmica, afastaria esse trabalho, todavia, de sua missão principal: relacionar Espiritismo e Filosofia. Por isso opta-se pelo simples e pelo direto na explicação de termos e conceitos de cunho, prioritariamente filosóficos, mesmo que isso leve algum tipo de redução conceitual. Opta-se, assim, prioritariamente pela comunicação com o leitor, para além do preciosismo técnico contraproducente.
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