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F) A recusa panteísta em Kardec

  • Foto do escritor: Vinícius Costa
    Vinícius Costa
  • 11 de out. de 2022
  • 6 min de leitura

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A época de Kardec, o monismo era uma doutrina filosófica popular derivada, no Ocidente, dos trabalhos de Baruch Spinoza (1632 -1637) que escreveu o tratado Ética, uma resposta à teoria de Descartes sobre a dualidade do corpo e do espírito. Aos moldes do Ser de Parmênides, Spinoza acreditava que Deus era a substância única de todas as coisas e nenhuma outra realidade poderia existir fora de Deus. Assim, o monoteísmo das religiões judaico-cristãos dava lugar ao monismo filosófico na busca da verdade divina. Em um contexto de modernidade, e rompimento com a Igreja Católica, o monismo de Spinoza popularizou-se entre os intelectuais de espírito renascentista que buscavam o rompimento com o conhecimento que a Igreja Católica no ocidente determinava desde os tempos medievais.


Ciente desse cenário de disputa entre os monistas, e suas várias correntes derivadas como a panteísta, e os monoteístas, bem como da discussão se a criação divina habitava “dentro” ou fora do ser divino, Kardec questiona os espíritos sobre essa temática na questão quatorze de o “O Livro dos Espíritos”:


14. “Deus é um ser distinto, ou será, como opinam alguns, a resultante de todas as forças e de todas as inteligências do Universo reunidas?

Se fosse assim, Deus não existiria, porquanto seria efeito e não causa. Ele não pode ser ao mesmo tempo uma e outra coisa. Deus existe; disso não podeis duvidar, e é o essencial. Crede-me, não vades além. Não vos percais num labirinto donde não lograríeis sair. Isso não vos tornaria melhores, antes um pouco mais orgulhosos, pois que acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, conseguintemente, de lado todos esses sistemas; tendes bastantes coisas que vos tocam mais de perto, a começar por vós mesmos. Estudai as vossas próprias imperfeições, a fim de vos libertardes delas, o que será mais útil do que pretenderdes penetrar no que é impenetrável.”[1]


A resposta dos Espíritos em Kardec é clara em negar a teoria panteísta. A ideia de Deus como uma soma de força entre a matéria, tradição mais forte na filosofia oriental, é rechaçada pelos espíritos da codificação que, inclusive, atribuem essa busca, de se considerar tudo intrínseco a Deus, uma vaidade e orgulho humano como comprova a décima quinta questão de O Livro dos Espíritos:


15. Que se deve pensar da opinião segundo a qual todos os corpos da Natureza, todos os seres, todos os globos do Universo seriam partes da Divindade e constituiriam, em conjunto, a própria Divindade, ou, por outra, que se deve pensar da doutrina panteísta?

“Não podendo fazer-se Deus, o homem quer ao menos ser uma parte de Deus.[2]


Isso faz com que Kardec ligue-se filosoficamente a tradição monoteísta judaico-cristã que pensa Deus como um ser extrínseco à criação. Ao comentar os atributos divinos, em decorrência da resposta dada pelos espíritos a provocação da questão treze, o codificador ressalta a importância de se pensar a matéria criada como distinta de Deus e externa ao ser divino:


Deus é eterno. Se tivesse tido princípio, teria saído do nada, ou, então, também teria sido criado, por um ser anterior. É assim que, pouco a pouco, remontamos ao infinito e à eternidade. É imutável. Se estivesse sujeito a mudanças, as leis que regem o Universo nenhuma estabilidade teriam. É imaterial. Quer isto dizer que a sua natureza difere de tudo o que chamamos matéria. De outro modo, Ele não seria imutável, porque estaria sujeito às transformações da matéria. É único. Se muitos deuses houvesse, não haveria unidade de vistas, nem unidade de poder na ordenação do Universo. É onipotente. Ele o é, porque é único. Se não dispusesse do soberano poder, algo haveria mais poderoso ou tão poderoso quanto ele, que então não teria feito todas as coisas. As que não houvesse feito seriam obra de outro Deus. É soberanamente justo e bom. A sabedoria providencial das leis divinas se revela, assim nas mais pequeninas coisas, como nas maiores, e essa sabedoria não permite se duvide nem da Justiça nem da Bondade de Deus. (grifos nossos).[3]


Ao colocar Deus como imaterial, diferenciando a natureza divina da matéria, Kardec caminha distante do monismo de Parmênides de que a matéria é, por si, ilusória e só na essência habita-se verdade. Alimentado, também, pelas conclusões criticistas kantianas, Kardec não se porta como um racionalista filosófico pleno por excelência. A matéria criada por Deus também é verdadeira, não sendo ilusória. Ela só está externa a Deus, como toda a criação. O sentido criticista de Kardec, e da codificação do Espiritismo, faz o mestre lionês questionar os princípios monistas de Parmênides, para além da rejeição à sua consequência panteísta em suas tradições ocidentais e orientais. Para Kardec, a criação possui traços divinos, mas, em si, a matéria que compõe a criação, não é intrínseca a Deus. O equívoco, para Kardec, que dá início ao Panteísmo, se faz pela dificuldade de nomear as coisas como nomes próprios para cada uma delas e, também, neste caso, por se confundir o Espírito criado com o Fluído Vital. Este sim, para Kardec, retorna a divindade por ter sido um empréstimo divino à encarnação e que após a morte dos indivíduos, retorna para a fonte divina de onde veio. Todavia a individualidade, centelha divina, criada, permanece intacta e separada de Deus para caminho do seu processo evolutivo:


139. Alguns Espíritos e, antes deles, alguns filósofos definiram a alma como: uma centelha anímica emanada do grande Todo. Por que essa contradição?

“Não há contradição. Tudo depende das acepções das palavras. Por que não tendes uma palavra para cada coisa?


Comentário de Kardec: “O vocábulo alma se emprega para exprimir coisas muito diferentes. Uns chamam alma ao princípio da vida e, nesta acepção, se pode com acerto dizer, figuradamente, que a alma é uma centelha anímica emanada do grande Todo. Estas últimas palavras indicam a fonte universal do princípio vital de que cada ser absorve uma porção e que, após a morte, volta à massa donde saiu. Essa ideia de nenhum modo exclui a de um ser moral, distinto, independente da matéria e que conserva sua individualidade. A esse ser, igualmente, se dá o nome de alma e nesta acepção é que se pode dizer que a alma é um Espírito encarnado. Dando da alma definições diversas, os Espíritos falaram de acordo com o modo por que aplicavam a palavra e com as ideias terrenas de que ainda estavam mais ou menos imbuídos. Isto resulta da deficiência da linguagem humana, que não dispõe de uma palavra para cada ideia, donde uma imensidade de equívocos e discussões. Eis por que os Espíritos superiores nos dizem que primeiro nos entendamos acerca das palavras.[4]


O argumento kardequiano, como demonstrado pelos trechos selecionados em “O Livro dos Espíritos”, liga -se a explicação que ver-se-á, ainda, neste trabalho, trazida pela lógica de tendência empirista: a matéria criada por Deus está em constante movimento e transformação, bem como o Espírito, na trindade básica de Kardec, sai da simplicidade e ignorância na qual foi criado em busca de sua ascese evolutiva pela Lei Divina do Progresso onde a criação está inserida. Para Kardec, alinhando a possibilidade de união entre o racionalismo e o empirismo aberta por Kant, Deus, como criador, é que não pode, por lógica, está em movimento. Aproveitando se, agora, da tendência filosófica racionalista, Kardec argumenta que Deus possui como atributo a imutabilidade, pois daí deriva sua perfeição, ainda não alcançada pela Criação (matéria e espírito). Essa busca de unir ideais racionalistas com empiristas faz Kardec, junto com os Espíritos, construir uma mensagem espírita que busca o que há de melhor em cada filosofia na Terra, permitindo ainda, assim, não prender o Espiritismo as amarras intransigentes de nenhuma teoria que fira a disponibilidade da construção do conhecimento por reflexão e autoconhecimento dos sujeitos. Por isso, o Espiritismo apresenta-se em constante progresso e evolução capaz de acompanhar a ciência e a filosofia para o Codificador.

[1] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados. [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013. Pág. 59. [2] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados. [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013. Pág. 59. [3] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados. [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013. Pág. 58-59. [4] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados. [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013. Pág. 107-108.

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