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A) Período Pré-Socrático e a Doutrina dos Espíritos

  • Foto do escritor: Vinícius Costa
    Vinícius Costa
  • 11 de out. de 2022
  • 8 min de leitura


Como debatido na discussão que serve de preâmbulo para esta obra, opta-se aqui por pensar a filosofia antiga como o período histórico, na tradição ocidental, que existiu por volta do século VII a.e.c. ao século I d.e.c. Nesse sentido, compreende-se a construção do pensar filosófico como predominantemente a construção do pensamento grego. Adentrando tal lógica é possível, com maior facilidade, inferir o pensamento filosófico mais decisivo na formação do Professor Rivail identificando, assim, como já introdutoriamente discutido, o cenário cultural europeu de formação filosófica de Kardec. Para fins didáticos divide-se a filosofia antiga em três partes que se subseguem, breve apresentação, para posterior mergulho autoral nos filósofos que a compõem: o período pré-socrático, o período clássico e o período helênico.


Denomina-se o período pré-socrático, prioritariamente, a filosofia realizada nos séculos VI a.e.c. e V a.e.c., como o próprio nome pré-socrático indica, por pensadores gregos anteriores ao nascimento de Sócrates. A tradição grega explica que o início da palavra filosofia remete a Pitágoras, pensador da Ilha de Samos com nascimento por volta do ano 570 a.e.c, que ao ser perguntado sobre as atividades mentais as quais se dedicava em vida respondeu que realizava filosofia, ou seja, “amor pelo saber”. A palavra amor na língua grega possui vários significados e para cada um deles um termo diferente. Entende-se a ideia de amor na palavra philos, que indica um amor de pertencimento, um amor entre familiares e amigos. Também na palavra eros, indicando uma amor afetivo-sexual onde o erótico prevalece. Já a palavra ágape introduz um conceito de amor universal, um amor por todos, mais tarde vinculado ao amor de Jesus pela humanidade. Ao optar pelo philos para classificar seu amor pelo saber, sophia, Pitágoras inaugura a tradição filosófica de quem compreende que o conhecimento gera pertencimento, identidade e por que não, felicidade. Vários foram os pensadores pré-socráticos que, ao seu modo, procuraram revelar um conhecimento a quais se sentiam pertencentes. Destaca-se aqui Empédocles de Agrigento e sua teoria de união dos elementos físicos pelos sentimentos como síntese de unidade; Zenão de Eleia e sua busca pela constância e sua contribuição lógico matemática no paradoxo das metades; Xenófanes de Colofón e sua primeira teoria sobre a unidade; Demócrito e Leucipo de Abdera e suas contribuições para a pioneira teoria atômica; Tales de Mileto e seu pioneirismo filosófico na identificação da água como princípio norteador da matéria e do universo; seu companheiro de Mileto, Anaxímenes, que identifica este elemento primordial como sendo o próprio ar ao invés da água; Anaximandro, também de Mileto, e a teoria da matéria universal infinita do apeíron; Anáxagoras de Clazômenas e suas formas bases chamadas sementes que dão origem a realidade, as homeomerias; além do próprio Pitágoras de Samos que enxerga na matemática e nos números a verdade universal. Seria possível e rico colocar Kardec para conversar com cada um desses pensadores citados, entre outros antigos, podendo, inclusive, ultrapassar a tradição grega e remetendo as culturas antigas egípcias, hindus, arianas e chinesas, remontarmos as tradições culturais que influenciaram o saber da Terra, mas isso, apesar de rico e interessante filosoficamente, tiraria este projeto do escopo geral de buscar-se as influências mais definitivas e evidentes que resolvem os dilemas filosóficos propostos por Kardec aos Espíritos. Dessa maneira, em síntese, no período pré-socrático levar-se-á Kardec para conversar, especificamente, com dois pensadores pré-socráticos: Parmênides e Heráclito. Ao construir o diálogo da Doutrina dos Espíritos com esses dois autores tem-se um resumo da influência da Filosofia dessa época nas questões, principalmente, da primeira parte de o “Livro dos Espíritos”. Para tal é necessário que se construa um norte filosófico geral que orienta todos os pensadores pré-socráticos e marcam o nascimento da Filosofia na Grécia. Vamos resumir essas características que unem o os pensadores anteriores a Sócrates em quatro categorias: o mito, a poesia, o logos e a essência.


Iniciando pela discussão da mitologia, durante muito tempo na história da filosofia, acreditou-se na teoria do milagre grego que marcara o surgimento da razão filosófica em oposição ao mito. Essa explicação sustentou por séculos a defesa de que a filosofia era especificamente um fenômeno grego que outras culturas do passado não haviam conseguido fazer, justamente por não conseguirem largar o pensamento mitológico, muitas vezes caracterizado, equivocadamente, como primitivo. A partir do século XIX, e predominantemente no século XX, os estudos mais aprofundados sobre a Grécia, inclusive oriundos do pensamento arqueológico, construíram outro raciocínio que ficou conhecido como teoria noética sobre o nascimento da filosofia. Esta teoria parte do entendimento que a filosofia surgiu derivada do pensamento mitológico que permaneceu intrínseco as primeiras questões filosóficas pré-socráticas, apesar de o logos possuir aspectos qualitativamente distintos ao mito.


Kardec trata dessa questão sobre qual deve ser a compreensão espiritual sobre a mitologia antiga na questão de número quinhentos e trinta e sete de o Livro dos Espíritos. Assim, ele dialoga com os espíritos da codificação:


537. A mitologia dos antigos se fundava inteiramente em ideias espíritas, com a única diferença de que consideravam os Espíritos como divindades. Representavam esses deuses ou esses Espíritos com atribuições especiais. Assim, uns eram encarregados dos ventos, outros do raio, outros de presidir ao fenômeno da vegetação, etc. Semelhante crença é totalmente destituída de fundamento?


“Tão pouco destituída é de fundamento, que ainda está muito aquém da verdade.”[1]


A resposta dos espíritos vai ao encontro do que os filósofos gregos começaram a entender a partir do século VII a.e.c e VI a.e.c e que, posteriormente, no século V.a.ec. Sócrates deixará evidente, o fazendo inclusive ser condenado à morte por cicuta pela cidade de Atenas em condenação por corromper as mentes juvenis ao defender uma educação não baseada mais em Homero. Para Sócrates a educação baseada, apenas, nas histórias mitológicas como revelação da realidade tem pouco fundamento para a compreensão da verdade. O mito deve ser compreendido dentro de sua linguagem narrativa simbólica para que, a partir dessa interpretação, busque-se o fundamento de realidade daquela história. A filosofia nasce, assim, nesse diálogo com o mito. Em determinados momentos rompendo com a mitologia para a explicação da realidade. Em outros usando dos seus simbolismos como forma didática de apresentação do pensamento reflexivo para uma população educada no saber mitológico.


A filosofia pré-socrática também possuiu como característica marcante a sua construção em estilo mais poético do que prosaico. A poesia homérica ainda era a grande referência educativa nos séculos VII a.e.c e VI a.e.c marcando principalmente a educação das crianças gregas. Além disso, o estilo poético resolvia um problema técnico da época: a falta de papel. Para se escrever na Antiguidade, as culturas optavam em geral por três modelos: a importação do papiro do Egito, papel eficiente mais de alto custo. a escrita em pele de animais, principalmente de carneiro, processo que demandava produção constante e demorada; e a escrita cuneiforme, talhada na madeira, que demandava longo tempo para construção textual. Assim, a maioria do conhecimento transmitido na Antiguidade se dava por via oral e não escrita. Somado a uma população campesina que não dominava, em sua maioria, a alfabetização fenícia que dera origem a língua grega, a transmissão de conhecimento oral era a forma de comunicação mais viável na Grécia Antiga. Dessa forma, a poesia ganha destaque, afinal sua oralidade, construída em cima de rimas e ritmo, favoreciam a construção do texto declamado e do conhecimento para os ouvidos gregos. Por isso, poucos são os textos escritos encontrados de pensadores pré-socráticos. Em verdade, o que sobrou dessa época foram mais fragmentos, na maioria das vezes encontrados por meio de escavações arqueológicas, e não tratados ou sistemas filosóficos como se costuma ver no período grego subsequente, o período clássico.


A grande contribuição do período pré-socrático à história da filosofia remete-se ao uso da terceira característica marcado da filosofia pré-socrática: o uso dos logos. Essa palavra é de difícil tradução para qualquer língua além do grego. Em português já foi traduzida, como razão, pensamento, vontade, palavra, reflexão. O logos é a essência da filosofia. Se logos é uma palavra de difícil tradução não é de difícil compreensão de significado. O logos é o exercício de pensar sobre o pensar. É o exercício por excelência do fazer filosófico. É colocar o pensamento de frente ao espelho e observá-lo a ponto de, a partir da análise feita, construir o conhecimento. Não existe filosofia sem logos. Desde seu surgimento na Grécia pré-socrática, até os dias atuais, filosofar é, em si, um ato logosófico. Mantém-se, assim, na história da filosofia, essa palavra sem tradução preservando a força emancipadora que os gregos enxergavam no ato de pensar sobre o pensar.


Por último, na busca de evidenciar as características gerais do pensamento pré-socrático, tem-se a busca desses filósofos por revelar a essência das coisas. Por definição, na filosofia, é costume chamar o estudo da essência de ontologia. Nesse sentido, os gregos percebiam a essência como a união de dois princípios básicos: a arché e a phisis. Ao pensar a arché, os gregos buscavam identificar a origem das coisas, remetendo-se ao tempo e buscando responder à questão: Como começou? Já ao pensar a phisis, os gregos buscavam identificar a natureza das coisas, remetendo-se ao espaço e buscando responder à questão: O que há dentro? A essência para o grego era entendida como a união desses dois princípios, afinal, o grego acreditava que o que o habitava o interior da matéria era o mesmo que havia feito a matéria surgir. Arché e phisis, portanto, unidas, revelariam a essência das coisas. As escolas de pensamento pré-socráticas debatiam e discutiam qual era o elemento que funcionava como essência, arché e phisis unidas, do mundo. Os eleatas, como Parmênides e Zenão, localizados na região da Magna Grécia, atualmente território italiano, acreditavam que os elementos que compunham a matéria haveriam de ser abstratos. Em contraposição, os jônicos, como Heráclito e Tales, localizados na Grécia Persa, atualmente território turco, defendiam que elementos concretos pudessem estar na origem de tudo, como o fogo e água. A Escola Pluralista, representada prioritariamente por Demócrito e Leucipo, pensava que a essência poderia ser múltipla não tendo em si uma matéria única original, mas sim várias o que leva ao ideário dos átomos. Essa disputa sobre a origem e a natureza das coisas é onde reside o centro da pesquisa filosófica dos pré-socráticos na antiguidade clássica grega.


A questão sobre uma origem e natureza da matéria, aos moldes do pensamento pré-socrático, é uma das questões que Kardec investiga com os Espíritos em busca de uma resposta confirmativa. Assim, Kardec questiona sobre a arché/phisis do mundo em busca de resposta ontológica na questão de número trinta de O Livros dos Espíritos:


30. A matéria é formada de um só ou de muitos elementos?


“De um só elemento primitivo. Os corpos que considerais simples não são verdadeiros elementos, são transformações da matéria primitiva.”[2]


A resposta dos espíritos vai ao encontro do ideário pré-socrático das escolas eleatas e jônicas de buscar em essência uma matéria única. Além disso, para Kardec e os Espíritos, toda a matéria diversa encontrada no mundo se deriva desta original como evidencia a resposta dos Espíritos na questão de número trinta e três:


33. A mesma matéria elementar é suscetível de experimentar todas as modificações e de adquirir todas as propriedades?


“Sim e é isso o que se deve entender, quando dizemos que tudo está em tudo!”[3]


Qual é essa matéria, todavia, torna-se apenas questão de nomenclatura no Espiritismo. Dos espíritos, Kardec extrai o conceito, da ciência e da filosofia espera-se o nome e o raciocínio que o comprove. No século XXI, os estudos químicos e físicos sobre a unicidade da matéria comprovaram empiricamente a teoria física de Higgs que pressupõe o mesmo espírito filosófico pré-socrático e espírita, ao classificar o bóson como a matéria em definição primitiva de onde se deriva os demais estágios materiais. Se esta reposta é a definitiva, ou ainda parte da busca humana pelo saber em sua noção específica, só o tempo dirá. A necessidade de um estágio material primordial, como se especulou para os pré-socráticos, se revelou na Doutrina dos Espíritos e vem se comprovando pela física contemporânea é o que conecta e une Filosofia, Ciência e Religião. Cabe a religião revelar, a Filosofia problematizar e a Ciência comprovar. Não excludentes tais saberes podem, em espírito de humildade, caminharem juntos e unidos ao invés de dispersos e excludentes. Mantendo suas identidades, que os demarcam e que não necessitam se misturar, mas dispostos em demonstrar o saber como escopo de união. Esse era o espírito de Kardec na codificação.


[1] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados. [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013. Pág 338. [2] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados. [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013. Pág. 86. [3] KARDEC, Allan. O livro dos espíritos: filosofia espiritualista / recebidos e coordenados. [tradução de Guillon Ribeiro]. – 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013. Pág 85.

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